sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O universo do samba de Maria Rita

Sambas de Maria
Definitivamente dentro do universo do samba, como Joyce Moreno a descreveu em música, Maria Rita se consagra em um estilo único e próprio dela mesma, sem as amarras e caricaturas semelhantes às da mãe, Elis Regina, e sem o fantasma do estigma de que era uma cantora mediana graças ao talento de herdeiros. Sempre fui muito crítico com a carreira de Maria Rita, justamente porque ela não conseguia se desvencilhar da mãe e porque seus primeiros repertórios estavam fadados a ser um festival de continuidade na qual a mãe não conseguira cantar. Depois de muito tempo a cantora Maria Rita mostrou a que veio: uma verdadeira detentora do samba no século XXI. Não que seus primeiros discos sejam ruins, pois eles não o são, mas o fato de Maria estar cantando samba soa mais verdadeiro e genuíno de sua parte do que cantar músicas com roupagens fúnebres. Com lançamento oficial no dia de hoje,  Amor e Música (2018 / Universal Music / 35,00) é um dos melhores discos de samba da cantora e, de quebra, o melhor de toda a sua carreira e o fato disso acontecer é muito simples: Maria Rita, além de se consolidar no estilo do samba, conseguiu compreender que sua voz se enquadra melhor aqui do que nas canções ditas populares e intelectuais. Longe de ser uma intelectualizada na MPB, Maria já dava sinais de cansaço ao lançar discos sem graça e com apelo romantizado, coisa que não combinava em nada com seu estilo e que também não se assemelhava com o de sua mãe. Mesmo assim, La Rita vinha com trejeitos e nuances idênticos com as de Elis e isso dava a impressão de que não seria legal, que logo ela seria atacada de um monte de coisas e teria que mudar o revés do caso. Dei muitos pitacos em Maria Rita e depois que ela adentrou no universo do samba, muitas coisas aconteceram: a começar pela voz da cantora, que combina nítida e perfeitamente com o samba e dela trazer para esse ambiente cantores e compositores de outrora, misturando com os da atualidade. Com tudo isso, Maria Rita comprovou que é a detentora do samba, com bastante humildade e muita categoria. Mas tem uma coisa que me chamou a atenção nesse disco: a capa. E quem lê meus artigos desde o começo do meu ofício sabe que sou muito antenado com as capas (mesmo que muitas vezes o conteúdo seja mais significante). Primeiro que a cantora trouxe um ar da década de 1970 e 1980 com as letras no estilo medalhão de ouro e isso soa como uma nostalgia gostosa de ser lembrada e segundo porque a capa é de uma simplicidade sem igual, demonstrando que o pescoço da cantora, destoando a ideia de que sua voz é a maior potência de seu trabalho. Amor e Música mostra as diferentes gerações de compositores em diversos gêneros e a mistura agradável que isso proporcionou, como a parceria entre Arlindo Cruz e Davi Moraes, em Cara e Coragem. Não mais, a canção virou samba após Maria Rita perceber o potencial popular dela e Arlindo cair de cabeça na parceria, pois inicialmente a canção seria um blues.  Cadenciando no samba, La Rita transita entre as canções de amor às dores de saudade e o novo disco tem um fio nítido para a cantora: a faixa título, composta por Moraes Moreira no disco Cidadão em 1991, agora foi gravado em samba. A força de Maria Rita prova que a cantora se distanciou da imagem e semelhança da mãe, como sempre critiquei, e agora ela abocanha seu lugar no topo das verdadeiras cantoras da Música Popular Brasileira. O samba, hoje, pertence à Maria Rita!

 Amor e Música (2018) / Maria Rita
Nota 10
Por Marcelo Teixeira

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Discos para ouvir: Novo Rumo - Glau Piva canta Caetano Júnior

Novo Rumo: a cara da MPB
O rumo da música popular brasileira não anda lá essas coisas há um certo tempo e é preciso garimpar muito para poder encontrar cantores que realmente salvam o estilo com músicas que elevam nossos sentimentos e nos fazem pensar a respeito da vida, do tempo, das coisas mais absortas. A prova mais cabal de que esse sentimento de renovação ainda existe é o CD Novo Rumo (2017 / Trattore / 23,99) em que a cantora Glau Piva canta Caetano Júnior. Sendo um dos mais belos CDs lançados no ano passado e um dos mais lindos e sentimentais que já ouvi em toda a minha vida, o CD ganha notoriedade pela força de expressão na voz de Glau e pela sutileza e habilidade nas canções de Caetano. A entrega total da cantora fez toda a diferença neste trabalho, pois sua voz casou perfeitamente com os recados anunciados nas canções como Novo Dia, Nuvem Branca ou Contraponto, em que há o ar de uma suavidade ímpar, tamanha a grandeza desse álbum. Totalizando 13 composições de Caetano Júnior (uma melhor que a outra, havendo uma sintonia total entre as faixas), Glau amarra com firmeza o uso de sua potente instrumentação primorosa com as letras bem delineadas de Caetano, que escapam do óbvio e, em uníssono, garantem um duelo de faixas inundas por um sentimento grandioso. Volátil em todas as estâncias e nuances do disco, o registro deste trabalho formidável transita por diferentes setores do cancioneio brasileiro, promovendo tanto músicas carregadas de um lirismo autoral quanto de um foolk abrasileirado ou de um sambinha moderno em ritmo jazzístico. Mesmo que a presença instrumental, letrada e poética de Caetano Júnior esteja por todos os cantos do trabalho (ele também está nos pianos), a voz de Glau é quem abocanha o resultado chamando as atenções para um desfiladeiro de músicas redondamente lindas e assimétricas. Mais do que figuras presentes nesse trabalho com a cara da música popular brasileira, os comandos dos dois grandiosos artistas ganham destaques mutuamente pelo conjunto da obra: a inteligência poética de Caetano que ganha letra, forma e música e cai como uma luva na voz cintilante de Glau, que rebate nos pianos e nos instrumentos focalizados no mais cristalino de sua voz. Há um elo de bola de neve que combina com o resultado harmonioso e que gira em torno da presença musical ricamente produzida por músicos de qualidade e competência primordial. Os elementos de outrora personificados pelas letras de Caetano dão à Glau Piva a interpretação romântica, excêntrica, melancolicamente louca e passivamente sensível dentro de suas capacidades e imaginações, com uma interpretação verdadeira de pura intensidade. A calmaria que prevalece em algumas faixas surge com a exaltação da música anterior, quebrando qualquer tipo de regra ou, na melhor das hipóteses, qualquer tipo possível de linearidade das canções.  O delinear apoio em distintos e afáveis campos da música acaba posicionando o ouvinte dentro de um variado universo sonoro, em que a transformação a cada audição acaba sendo uma somatória de musicalidade e novas interpretações, onde reconfigura suas lógicas de pensamento. Ou seja, você acaba ouvindo novamente as faixas e uma nova roupagem lhe vêm à mente.  Esse vasto conjunto de elementos, sons e fórmulas que delimitam todas as canções acabam por fim traduzindo a grandiosidade do registro de um dos melhores trabalhos feitos para e pela música popular brasileira, transformando Novo Rumo em uma parte intrínseca de um vasto e amplo momento musical.


Novo Rumo (2017) / Glau Piva canta Caetano Júnior
Nota 10
Por Marcelo Teixeira

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Ano Luiz Melodia no MCB: o clássico Pérola Negra (1973)

Pérola Negra: clássico dos clássicos
Luiz Melodia é o grande homenageado do Mais Cultura Brasileira neste ano de 2018 (título que no ano passado foi de Marisa Monte) e durante todo esse ano será lembrado aqui e ali por músicas, composições ou álbuns importantes de sua carreira. O artista foi considerado um dos 100 mais influentes do cancioneiro nacional pelo conjunto da obra e suas músicas são referência para muitos cantores que estão inserindo nessa caminhada de fazer música do bem.  Pérola Negra (1973 / Phillips / 19,99) foi o primeiro disco lançado por Melodia, que teve direção musical de Péricles Albuquerque e que foi recebida mornamente na época. A gravação do álbum veio após o sucesso estrondoso das gravações de Gal Costa e Maria Bethânia em 1971 e 1972, respectivamente, das canções Pérola Negra – que dá nome ao título e até hoje é cantada ou reverenciada pelo nome – e Estácio Holly Estácio. Apesar do sucesso de crítica, o álbum não teve o mesmo êxito comercialmente. O disco mescla elementos de diversos elementos ao universo sambista que caracteriza as origens do artista e reflete influências de blues, rock, soul e até samba-canção, de um universo habitado por jazzistas e artistas que Melodia fora influenciado.  Porém, o álbum é famoso por conter uma participação especial do musico dito marginal Daminhão Experiença, que foi convidado para contribuir com o backing vocal na faixa Forró de Janeiro.  Pérola Negra traz dez faixas arranjada pelo violonista Pedrinho Albuquerque. Um solo de flauta de Canhoto, acompanhado por seu regional, dá a largada à eternidade de Melodia, no samba Estácio, Eu e Você, inspirado em Cartola. A segunda faixa já é um blues (e dos bons) Vale Quanto Pesa, em instrumentação acústica. O disco ainda tem o clássico Magrelinha, que anos depois se transformou em outra marca registrada do cantor e compositor carioca. Pérola Negra é o ápice do ápice da música popular brasileira e pude dizer isso pessoalmente ao Melodia em um encontro que tivemos na Avenida Paulista no ano de 2016, quando ele já estava sentindo algumas dores lombares (coisa que a mídia ainda não sabia). Há estética, há beleza, há samba, há blues, há a voz de Melodia estrondando tudo e a todos. Todas as suas obras são e serão reforçadas pela tese de que o começo foi aqui, em 1973, com este emblemático disco que, anos e anos mais tarde, foi incluído na posição 32 na lista dos 100 maiores discos da música popular brasileira pela conceituada Revista Rolling Stone Brasil.


Pérola Negra (1973) / Luiz Melodia
Por Marcelo Teixeira

domingo, 7 de janeiro de 2018

Discos para esquecer: Ana Vilela e seu Trem-Bala (2017)

Vilela e um disco morto
Considerada por dez entre dez pessoas como sendo a cantora do ano de 2017 e por três entre dez pelos críticos de música como uma cantora nonsense no cenário popular brasileiro, a cantora e compositora Ana Vilela surgiu do mundo da mídia esporádica (aquela que te levanta a moral, mas logo te trás para o planeta Terra) e foi alçada ao mundo do showbizz da mesma forma como uma Elis Regina ou Gal Costa surgiram na década de 1960 com seus estilos competentes e dotes artísticos. Mas há uma diferença gritante e relevante nessa minha comparação pífia: Elis e Gal batalharam para serem reconhecidas como cantoras profissionais e utilizaram a voz para mostrar algum talento (coisa que até hoje, no século 21, ambas conseguem ter), enquanto que Ana precisou das mídias para se autopromover. Há algo de errado nisso? Obviamente que não, mas se levarmos em conta que Elis e Gal não eram compositoras e que ralaram muito para provar algum talento, disso ninguém pode duvidar. O mundo de hoje é formado por bestas digitais (Umberto Eco poderia nos explicar isso melhor) e com tantas coisas correndo contra o relógio, eis que as gravadoras não estão mais se importando com aquilo que é vindo da internet. Algumas poucas cantoras surgiram dali e dali estão voltando para o esquecimento, enquanto outras, verdadeiramente genuínos no seu perfil de cantoras e cantores, batalharam por uma gravadora que lhes dessem suporte artísticos para poder mostrar um pouco de suas músicas e qualidades. Ainda que algumas cantoras surgissem de gravadoras, como os casos de Ana Carolina, Maria Gadú ou Maria Rita, as mesmas se encontram sumidas da grande mídia, sem discos lançados ou, quando lançados, quase ninguém presta atenção. Ana Vilela está nesse nicho chamado famosidades instantâneas, que logo voltará de onde saiu: a internet. Se sua música Trem-Bala foi uma apoteose no ano passado, com participação até de Luan Santana, seu disco passou desapercebido pelo grande público, mesmo com a famosa música O Leãozinho, composta por Caetano Veloso para o disco Bicho (1977). Muitos sequer sabiam que ela tinha lançado um álbum com treze faixas. Outros nem sabiam que Ana Vilela era a detentora da canção Trem-Bala. O disco nasceu morto, ficou morto e morreu sem enterrar, porque assim é a mídia do caos, como diz na canção do cantor mineiro Luiz Marques (2009) e que acaba sendo um manifesto contra a mídia especializada em notícias ruins e nas pessoas que insistem em ficar atentas, antenadas, sublinhadas neste caos chamado internet, mídia digital e afins. A música de Luiz Marques se iguala com a música Senhas, de Adriana Calcanhotto (1992) em que diz eu não gosto do bom gosto. Ana fez muitas pessoas chorarem pelos cantos do país, mas e o resto do disco, por que ninguém comenta suas outras canções? Por que a mesma mídia que a elencou não mostra as outras faixas? A resposta é simples: não há o que escutar. Trem-Bala (2017 / 22,99) já é o suficiente para que Ana Vilela nos sufoque com suas músicas de uma única estação. Mas há uma boa notícia nisso tudo: Ana Vilela fala de amor e de igualdade em suas músicas e mesmo que Trem-Bala seja uma falácia contra o moralismo radicalizado nas pessoas, a canção passa um ar de mentira, de ilusão, de sonhos inexistentes ao mundo atual e, com isso, retornemos à Mídia do Caos de Luiz Marques e as Senhas, de Adriana Calcanhotto, que são mais verdadeiras que a música blasé de Ana Vilela.


Discos para esquecer: Ana Vilela e seu Trem-Bala
Por Marcelo Teixeira

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Os bichos de Caetano Veloso (1977)

Os bichos de Cae
Havia vida inteligente na década de 1970 e Caetano Veloso se destaca ainda mais nessa seara musical que tanto fazia seus concorrentes a produzirem mais músicas de qualidade.  A vasta criatividade intelectual de Caetano estava tão aflorada em 1977, que seria impossível não produzir um disco sensacional como Bicho (1977 / Phillips / 21,99) e vale dizer que esse disco trouxe uma das sequências musicais mais emblemáticas da MPB, pois Odara possui um ritmo dançante e frenético em seus quase sete minutos de duração e ainda hoje e já no século vinte e um, a música é referência na discografia do cantor. Sendo um dos discos menos lembrados da carreira, mas curiosamente, o disco que tem um festival de canções cantadas por muitos até hoje, Bicho trouxe na bagagem canções com Um Índio, Tigresa, Gente, Leãozinho.  Tigresa é uma bela homenagem à Sônia Braga e Zezé Motta, duas das inspirações de Caetano naquela época e que tem belas poesias embaladas por um violão elegante.  Para registrar Bicho, Caetano se cercou de um time de excelentes músicos que contribuíram para com a estética do disco, que traz altos arranjos e elaborados artistas. Se hoje vemos Anitta reverenciar as comunidades cariocas, Caetano já o fazia isso e com muita intelectualidade, representando uma pegada forte, dançante e atemporal, que era a proposta de Bicho, como a nova favela brasileira, pois Caetano queria lançar um disco especialmente para as pessoas mais carentes dos subúrbios. O resultado é um disco extremamente culto, refinado, dançante, popular e com a cara tanto do rico quanto do pobre.  Além das músicas e letras, Caetano também assina a capa do disco, com a borboleta, o sol, a lua em fundo branco e a palavra bicho, uma gíria muito comum usada entre os músicos na época. Reitero: esse é um dos melhores e mais completos discos de Caetano Veloso.


Bicho (1977) / Caetano Veloso
Nota 10
Por Marcelo Teixeira

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Elis Regina 70 anos - box com quatro discos indispensáveis

Elis: atemporal ao tempo
Lançado originalmente em 2014, a caixa Elis Regina 70 Anos ($149,90/2014) contendo quatro discos da carreira meteórica de Elis Regina (1945 – 1982) se faz presente em um momento conturbado da música popular brasileira e é por esse mesmo motivo que abro 2018, quatro anos depois desse lançamento, para poder elencar a imagem e semelhança da cantora. Se no ano passado tivemos tantos desperdícios musicais e tantas vozes desestruturadas com linguagens estranhas e desafinadas, ouvir uma música sequer do cancioneiro de Elis já é o bastante para lubrificar a mente a alma daqueles amantes da incultura nacional. A caixa nos proporciona momentos sensacionais de sua obra inquietante, como, por exemplo, o CD Saudades do Brasil (1980) e o emblemático e sutil Essa Mulher (1979). Em sua breve passagem pela Warner no final dos anos 1970, pouco antes de sua morte, Elis deixou registrados dois álbuns fundamentais em sua discografia: Essa Mulher tem um lado de empoderamento feminino, coisa que Elis já instaurara nos anos de 1979 e Saudades do Brasil, um disco político e emblemático que exaltava a dramaticidade da cantora e que agora retornam ao catalogo com áudios remasterizados e capas, contracapas, encartes e rótulos originais. Completando o primeiro póstumo da cantora – o disco Ao Vivo em Montreux, lançado originalmente pela Warner em 1982. Revisitar a obra de Elis Regina aqui e ali é sempre um prazer, mesmo que em tempos atuais e complexos como os de hoje.



Elis Regina 70 Anos / Elis Regina

Por Marcelo Teixeira