sexta-feira, 14 de junho de 2013

O canto forte de Clara Nunes em O Canto das Três Raças


Clara: músicas fortes no disco de 1976

Clara Nunes se foi em 1983 e já se foram 30 anos de sua morte, mas seus discos ainda ecoam e transforma o mundo da música em algo surpreendente e inovador. O Canto das Três Raças (1976 / EMI / 29,99) é um disco que pulsou nos poros das pessoas, da elite, da sociedade, dos políticos, do mundo e mostrou o quanto a África está em nossas veias, assim como a figura de Clara demonstra o Brasil em suas variantes e formas. O disco agitou as carcaças dos mais brasileiros dos ritmos, cravando para sempre o nome de Clara Nunes na história de nossa música. Cantando forte, bonito e audacioso, o disco lançado em 1976 trouxe inovação e determinação de uma das cantoras que bradavam a brasilidade na época. Clara Nunes foi eleita a melhor cantora de seu tempo por vários anos e até hoje seu nome inspira e aspira novas cantoras a seguirem seu estilo, adotarem seus cabelos e seus adornos e a cantarem em uníssono praticamente todas as faixas deste disco.

Lançado até mesmo no Japão, que se renderam – e ainda se rendem – aos nossos grandes artistas, O Canto das Três Raças merece todos os destaques possíveis pela magia, pelo encantamento, pelo ritmo, pela voz, pela cantora, pelos compositores e pelo conjunto da obra. Clara era estrela e fez deste disco uma das melhores maravilhas de seu tempo. Ontem e hoje se confraternizam e já se completam 37 anos do lançamento desta obra-prima intelectual e perfeita do cancioneiro de Clara. A cantora, que não gostava de rótulos e nem de ser chamada de sambista, gostava de ser popular, mas mal sabia ela que o seu popular agradava a multidões que a seguiam e a idolatravam. O blog Clara Nunes Deusa dos Orixás (www.claranunesdeusadosorixas.blogspot.com) é uma prova disso: desde o seu lançamento, vem mostrando o quanto a cantora ainda é lembrada e a força descomunal de sua presidente, Aninha Vieira, é favorável para o crescimento dos novos fãs.

O Canto das Três Raças deveria ser um hino à todos e cantado em praça pública antes mesmo de iniciar a partida de futebol ou quando morresse algum político. Para a Copa do Mundo, que iniciará suas partidas já no ano que vem, a música que trata de um mundo pobre, triste, arcaico e laico, seria uma boa pedida para que nosso canto ecoasse cada vez mais alto, bradando assim uma legião de brasileiros ao confinamento mútuo de várias gerações.

De Vinicius de Moraes surge Ai Quem me Dera, um hino deprimido, melacólico e sutil sobre a esperança do amanhã, do belo e do novo acontecimento e é marcado por belas palavras que nos remete a lembranças tristes de quem partiu ou de quem podemos esperar ouvir chamar nosso nome um dia. A esperança era a melhor palavra de Clara, que já deu nome a um de seus discos e era repetida várias vezes por ela. Aqui em O Canto das Três Raças, praticamente todas as músicas retratam a fé e a esperança de que algo novo possa acontecer ou renascer.

Basta Um Dia, de Chico Buarque, ficou tão marcante e presente em sua voz, que até mesmo o compositor carioca ficou maravilhado com tamanha dramaticidade. A música tem um certo lirismo que conseguimos captar através da voz de Clara e que penetra em nossa alma com afinco e sutileza tenra. Meu Sofrer, de Marçal e Bide, traz toda a efervescência de uma luta contra o amor, o pecado e a lastima. Risos e Lágrimas, de Nelson do Cavaquinho, José Ribeiro e Rubem Brandão se entrelaça com Tenha Paciência, também de Cavaquinho com Guilherme de Brito e fazem uma justa causa para com a fé e o afeto.

O forró e a alegria pedem passagem em Alvoroço no Sertão e Fuzuê, fazendo da voz de Clara um grito contra a impunidade nordestina. Lama foi um sucesso seguido de perto pela faixa título e até hoje seu verso repercute em debates. Creio eu que, para noventa por cento da população brasileira, a canção título é o máximo de informação que se tem sobre O Canto das Três Raças, sendo música de batuque pra negro escravo fazer festa, mesmo sendo um eco triste.

O Canto das Três Raças começa com uma introdução em toque simples de atabaque, característico de terreiro de umbanda, não de candomblé, secundado pela entrada de um violão anunciando a harmonia musical, para a entrada da voz da Clara que canta, acompanhada somente por esses dois instrumentos, a primeira estrofe. Já na segunda, quando outra raça entra em cena, o negro, um Agogô entra junto e se une aos dois instrumentos, permanecendo assim até a quarta, a do refrão, cantado só pela Clara, quando surge o som de um surdão com batida sem resposta (tummmm……..tummm), exatamente como era o samba em suas raízes. Depois de um tempo é que veio a batida com resposta (tum-tu….tum-tu) imitando o coração, acelerando o andamento musical e se mantendo até hoje nas escolas de samba.

Esse trio de instrumentos se mantém com a Clara até o final da primeira execução da composição, que finda no segundo refrão, agora cantado por um coro de vozes masculinas, imitando os escravos. Na entrada da segunda execução, aquele atabaque único se transforma em tres (Run, Rumpí e Lé), comuns ao candomblé, o surdão ganha batida com resposta, o Agogô começa a improvisar e, junto com eles, entra todo o instrumental de uma escola de samba cantando um enredo na avenida. 

Acho que quando ouvimos a música, não só essa, mas todas de um mesmo nível, sentimos toda essa preocupação do compositor no ato da composição através da emoção que ela nos transmite; esse destrinçar da canção exige, além de informação cultural, um entuito de se observar, pois quando ouvimos a canção pela primeira vez, sentimos uma coisa, qualquer coisa, um arrepio ou um suor frio, por não saber definir o que foi aquele sentimento. Uma das grandes sacadas geniais feitas em disco está aqui, em O Canto das Três Raças, cantada pela brasileira Clara Nunes em um ano difícil como o de 1976, produzido Paulo César Pinheiro. Um disco que merece ser um Hino Nacional Brasileiro.


O Canto das Três Raças – Clara Nunes

Nota 10

Marcelo Teixeira

Um comentário:

Pessoa36 disse...

Marcelo,
meus parabéns,sempre.Seu blog merece ser conhecido e bem avaliado.
Pela amostra se conhece o pano.
Gostei muito de sua avaliação de "O Canto das Três Raças.
Meu abraço.